O GPS indicava que o local era ali, mas ali era um casarão em estilo eclético em ruínas, fechado há sabe-se quantos anos, apesar do totem metálico com a história da construção. Predominava o neogótico, mas havia alguns elementos claramente art nouveau. Apesar de abandonado, não estava fechado. Luzes acesas no portão lateral, aberto na grade metálica que já havia visto dias melhores, cujos detalhes decorativos não podiam ser vistos claramente sob a luz dura da lâmpada incandescente. Aberto, mas vazio. O corredor entre a lateral do casarão e o muro era estreito e comprido. Apenas seu início era iluminado por um uma única lâmpada incandescente no final de um fio que seguia corredor adentro, mergulhando na escuridão.

Seguiu corredor adentro, um passo por vez, porque é assim que humanos andam, e não demorou muito para os passos levarem para as trevas cheias do cheiro úmido de construções abandonadas, sob a fraca luz de estrelas que mal permitiam perceber as paredes. A medida que avançava, podia começar a ouvir o burburinho de vozes ao longe, como vindas de detrás do sonho. Um cheiro de seiva e terra dava sinais de que o corredor estava tomado pela vegetação até há pouco, e que mãos alheias haviam retirado as ervas há não tanto tempo. Não se lembrava, entretanto, de ver sacos de lixo perto do casarão com os corpos removidos do corredor onde estava.

Quando chegou ao primeiro degrau quase caiu. O pé encontrou o abismo antes de reencontrar o chão menos de dez centímetros abaixo. Mesmo com os olhos mais adaptados à escuridão, não conseguia ver os degraus. Tateava com os pés, em busca da fonte das vozes, cujo burburinho se movia em ondas, indo e voltando, como a brisa do mar. Os degraus, largos e rasos, desciam lentamente escuridão adentro, a medida que o cheiro de terra e seiva era substituído pelo cheiro de verde e orvalho. O corredor de serviço, mais largo agora, tinha cada vez mais plantas vivas em suas laterais e menos paredes nuas e decadentes.

Só percebeu que o caminho se curvava para a esquerda, em uma espiral descendente, quando já havia completado quase uma volta. Os degraus pareciam menos largos, mas ainda rasos demais para uma escada. Em algum momento as poucas estrelas da noite levemente nublada deixaram de ser visíveis, mas tinha certeza de que o corredor não havia ganhado um teto. As vozes, iam e vinham, escalando a espiral com sua música incerta.

Talvez treze voltas na espiral foram necessárias para ver a luz quente e bruxuleante do fogo se filtrando pelas frestas de um portão de madeira que já havia visto dias melhores, emoldurado por um arco de pedra. As vozes finalmente eram claras e entoavam uma canção que ia e vinha, de sussurro a mezzo forte. As palavras eram incompreensíveis, mas eram palavas, em um idioma desconhecido, que se repetiam como mantra. Parou por instantes diante da porta. A tentação de tentar olhar pelas frestas e ver sem se revelar passou pelos pensamentos, mas não ficou mais que uma fração de segundo.

Empurrou uma das folhas da porta e se deparou com as figuras ao redor da fogueira, cantando. Não dançavam, mas seus corpos se moviam ao som da melodia em um leve balanço. Estavam sentadas em bancos de pedra, sem encosto, talhados em algum estilo há muito apagado pela erosão de sua superfície, uma por banco, apenas a silhueta escura visível atrás da luz dourada do fogo. Os olhos buscaram automaticamente por um banco livre, mas não havia nenhum. Ao redor dos bancos as sombras nas folhas se moviam ao sabor da dança do fogo. Estavam dentro de um círculo que talvez, um dia, tenha sido uma cerca viva, mas cujo crescimento desordenado tornou uma parede impenetrável de verde, pontilhada de flores brancas com um cheiro doce e noturno.

A luz do céu não fazia frente à fogueira, e se mostrava um túnel negro que se estendia das plantas que circundavam ao infinito. À medida que seus passos se aproximavam da luz intensa da fogueira, os olhos eram obrigados a buscar refúgio nas sombras das figuras sentadas frente a ela. Principalmente jovens, quase todos por volta dos vinte, com roupas ordinárias de uma noite quente e abafada. O calor das chamas se refletia nas peles brilhosas com a fina camada de suor que o fogo arrancava no ar úmido e antigo.

Quando estava a um passo de distância dos bancos, começou a circundar o círculo pela esquerda, continuando a espiral por onde viera. Após cada banco, um degrau, largo e raso, no calçamento de pedra, permitia que descesse mais e mais. A medida que descia, o fogo criava imagens fantasmas no olho direito, que se moviam na treva da parede de ervas salpicada de flores do olho esquerdo. Não chegou a descer dez voltas na espiral antes de ver seu lugar, entre outras pessoas da sua meia-idade. Ainda demoraria décadas até precisar chegar ao fundo onde a espiral termina.

Somente ao se sentar começou a cantar a melodia que a cada volta da espiral se tornava mais clara e inteligível.

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As chamas acompanhavam o ritmo das palavas, ou o contrário, enquanto queimavam o perfume doce das flores. As sombras luminosas do fogo dançavam sobre sua visão, impedindo que visse as figuras que passavam atrás de si, descendo ainda mais fundo na espiral, rumo a segredos mais primordiais.

Talvez dezenas de figuras tenham tido que passar atrás de si e horas de canções tenham tido que ser entoadas, antes do fogo despertar no fundo da espiral e começar a lamber as paredes, escadas, bancos e figuras. Quando começou, sabia que tinha começado. Sentia o fogo começar seu consumo, sentia a proximidade do outro lado, como não era capaz de sentir nas vidas anteriores, em que seu lugar era nos primeiros bancos após a porta.

O terror continuava presente diante do fogo sublime que engolfava a existência e percorria a espiral como rastilho. O cheiro de sangue e cinzas substituiu tudo quando as chamas finalmente chegaram, e no máximo da luz criaram a treva mais absoluta.

Dessa vez conseguiu ouvir a voz que vinha do fundo do abismo, no fim da espiral.

Começou.