Como tornar a comunidade uma política pública?

Existe uma discussão acadêmica, normalmente apropriada pelos elementos mais nefastos da política, sobre sociedades com alta e baixa confiança. Essa discussão muitas vezes gira em torno da homogeneidade da sociedade, apontando que em sociedades mais homogêneas as pessoas confiam mais umas nas outras e formam laços mais facilmente. Essa apropriação se baseia, antes de mais nada, na premissa que a homogeneidade é, essencialmente, étnica, e não comportamental. Claro que existe uma sobreposição entre comportamentos de uma etnia, está basicamente na definição de etnia, mas seria má-fé tentar reduzir a homogeneidade dos comportamentos aos elementos étnicos culturais.

A confiança depende, antes de mais nada, do encontro repetido das pessoas em contextos não hierarquizados. Se todo mundo precisa se ver todo dia, a teoria dos jogos nos manda ser gente boa, algo conhecido no senso comum como “boa vizinhança”. Esses encontros não precisam se dar em contextos carregados de exclusividade étnica e cultural, mas precisam de igualdade. Se a praia é dividida por classe social, com algumas pessoas que pagam por cadeiras e aperitivos sendo aduladas e os farofeiros sendo enxotados porque o controle da praia passou para os comerciantes, isso não é um contexto de igualdade. E aqui temos um dos nossos maiores problemas para construir confiança na nossa sociedade: os espaços de convívio se tornaram espaços de consumo. Dá-lhe privatização, empreendedorismo e sucateamento da zeladoria pública, e cada vez mais o convívio com conforto é uma exclusividade de quem paga.

Aliás, é quem paga que participa de qualquer atividade coletiva hoje em dia, de aula de ioga a acesso ao Discord exclusivo para apoiadores do canal. Temos mercantilizado a comunidade há algumas décadas, e reservado a oferta de atividades comunitárias/coletivas como política pública apenas para os grupos em vulnerabilidade social. Não espanta que a igreja neopentecostal, que tem o time de futebol da igreja, o grupo de pescaria da igreja, a oficina de crochê da igreja, tenha se tornado o centro da vida social em tantas comunidades.

Minha intuição é de que precisamos de mudanças profundas que passam pelo urbanismo, pela criação e valorização de espaços públicos, e pela oferta de atividades em contextos que provoquem o encontro não hierarquizado de pessoas diversas para ir contra a tendência de isolamento das comunidades e sua transformação em nichos de mercado.

P.S.:

Mais especificamente sobre a questão do urbanismo, talvez você queira se aprofundar com esse material (Em inglês).

Pesquisa sobre densidade populacional, tamanho das unidades habitacionais e felicidade.

Entrevista com uma das pessoas envolvidas na pesquisa, apontando os mecanismos pelos quais o urbanismo fortalece as comunidades.

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1 Comentário

  1. @masdivago Feliz com o fato de que eventuais mudanças no post são refletidas na postagem. Então, tá seguro editar sem precisar fazer spam.

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