“Treinar a força de vontade”

Há muitos anos entrei em uma discussão sobre o sistema de “pontos de força de vontade” nos jogos da White Wolf, como Vampiro: a Máscara. O argumento é que não fazia sentido a força de vontade ser um recurso consumível, que vai acabando quando a pessoa é obrigada a fazer um grande esforço, uma vez que esse esforço funcionaria como um treinamento, portanto a “força de vontade” disponível deveria aumentar, e não diminuir.

Mas este não é um post sobre RPG, e sim sobre coaches, autoajuda e positividade. A ideia de que seria possível treinar a força de vontade está por trás desses objetos da nossa ideologia, crentes que é possível nós flutuarmos puxando os nossos próprios cadarços. Por trás de cada texto ou vídeo sobre resiliência, está essa crença de que quanto mais porrada da vida alguém leve, mais forte ele fica.

Essa visão entre em conflito com a experiência de vida de milhões de pessoas que se sentem esmagadas pelas circunstâncias e que são obrigadas a se obrigar a se arrastar, dia após dia, na linha de (des)montagem em que são esfolados, pouco a pouco, como carcaça no abatedouro.

Talvez o que falte para entender a discrepância seja entender mais sobre treinamento, ou educação, para usar um termo mais amplo. O desafio é uma parte realmente importante do processo, mas não pode ser exagerado. Uma das tarefas de um bom professor ou treinador é criar condições em que o pupilo vá ter um desafio grande o bastante para o fazer crescer, mas não alto demais, que vá gerar apenas frustração, dor e esgotamento. Ao contrário da ficção, apanhar do mestre faixa preta não ensina nada para o principiante, a não ser que o mestre faça um esforço consciente para reduzir o desafio que representa.

Voltando à força de vontade, o que a ideologia vende é uma simplificação: desafio leva ao desenvolvimento. Fosse uma mentira completa não seria tão capaz de convencer, mas sendo uma meia verdade que apela para o moralismo cristão no qual estamos mergulhados é capaz de esconder o elemento mais importante: treinamento só ocorre em um ambiente controlado. Qualquer desafio muito maior que nossa capacidade, em vez de nos ajudar a crescer, nos consome. O treino da força de vontade só vai ocorrer com desafios alcançáveis, e nunca com as tentativas desesperadas que a mecânica de gastar pontos de força de vontade pretendia representar. Quando o desafio se transforma em tortura, na tortura cotidiana que nos consome a vontade de viver a cada dia, não se trata mais de treinamento. O papel da ideologia é mascarar a tortura, como oportunidade de crescimento.

Vem fazendo isso bem.

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1 Comentário

  1. @masdivago É um sistema horrível esse tal de capitalismo. Nos bate todo dia e quer que a gente se sinta grato pela oportunidade ganhar resiliência.

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