O incômodo e a polêmica em torno da Shein gira em torno de questões ecológicas, demonizando o fast fashion e mostrando pilhas de roupas descartadas, exportadas para países de terceiro mundo. Porém, como acontece com o racismo científico, a proibição dos bonés na escola ou a guerra às drogas, suspeito que o argumento declarado está longe, muito longo dos motivos reais, porque os motivos reais são indizíveis. O motivo real é que a Shein oferece roupas bonitas por um preço muito abaixo do padrão do mercado.
O ódio ao fast fashion não tem a mesma virulência ao falar de C&A, Marisa ou H&M, se importa menos com as manufaturas mal pagas em Bangladesh ou no Brás que com as da Shein. Se o motivo apresentado fosse honesto, a Shein não seria o grande bode expiatório do mundo, mas mais uma dentre centenas de empresas visadas. O problema é que o produto da Shein se atreveu a sair do nicho de mercado do fast fashion ao fazer roupas mais bonitas que o aceitável para o fast fashion.
A moda é um campo hierarquizado. Para que as grandes grifes mantenham seu status elas precisam estar claramente em posição de vantagem em relação à confecção popular. Esse campo tem seus próprios critérios de consagração, em semanas de moda ao redor do mundo e regras estéticas transmitidas em bailes de gala, revistas de moda e fotos de celebridades. Enquanto o fast fashion não ameaçar o status do circuito de moda, ele é uma presença necessária, porque a prestígio das grifes depende exatamente delas não vestirem todo mundo. Nessa divisão do mercado, o fast fashion precisa produzir produtos facilmente percebidos como de qualidade inferior, seja em termos materiais, seja em termos estéticos. O que atraiu tanto ódio à Shein foi ela quebrar essa divisão de mercado, e oferecer produtos com uma qualidade material e estética muito acima do fast fashion tradicional a um preço acessível. Isso rouba mercado das marcas mais caras e pressiona o fast fashion a elevar sua qualidade sem aumentar os preços para se manter no mercado, causando bastante transtorno no mercado de moda. Mas isso é problema de empresário, que explica porque eles, repentinamente, começam a patrocinar e visibilizar movimentos como o Fashion Revolution.
Para os consumidores o problema é outro. A Shein reduz o poder da moda funcionar como marcador de classe social, fazendo com que as elites que se diferenciavam pelas roupas tenham que conviver com gente pobre bem vestida e sente a perda da sua exclusividade. Resta a elas, como tantas vezes em que houve alguma ascensão social ao longo da história, criar novas formas de se diferenciar através de iniciativas como moda circular, valorizar a produção artesanal, apelar para marcas que tenham um capital simbólico alto, e, claro, destilar veneno falando mal da Shein, que desencadeou esse problema, sempre que possível.
Não me entenda mal, os problemas ecológicos e trabalhistas do fast fashion existem e são graves. Mas a Shein está longe de ser o pior dentro deste mercado, apesar de ser a mais atacada. E é a mais atacada, não pelo que faz de errado, mas pelo que faz de certo.
P.S.:
Explicando um pouco do jargão.
Fast fashion: modelo de negócio de moda caracterizado por produção industrial, em grandes quantidades, de produtos pensados para terem baixa qualidade e serem substituídos rápido. Isso cria um consumo rápido, dependente de tendências e coleções, que gera grandes quantidades de lixo tanto pós consumo, já que as peças tem baixa durabilidade, quanto pré consumo, uma vez que a roupa não vendida na estação não tem chance de venda e é descartada. Esse consumo constante exige custos de produção baixos, normalmente sustentados a partir da exploração de trabalho em um país onde os salários são, comparativamente, mais baixos.
Campo: Pierre Bourdieu propõe o campo como um espaço simbólico coerente e organizado em que ocorrem ações sociais conexas (e isso é absurdamente abstrato). Por exemplo, podemos ver o jornalismo, o judiciário ou a formula 1 como campos. Campos se organizam em torno de polos de destaque, que tem o seu valor e importância reconhecidos pelos membros do campo, formando assim uma relação hierárquica. Existe mobilidade dentro do campo, mas cada campo, a medida que se estrutura cria seus próprios critérios de consagração, que justificam a hierarquia e fornecem os meios de ascensão. Os prêmios dos atletas, por exemplo, podem ser vistos como meios de consagração.
StellaFlores
Excelente análise!
Mas divago...
Muito obrigado =]