Certa vez, um professor resumiu todos os conflitos da História a “quem vai trabalhar para eu poder ficar a toa?”, o que não deixa de ser uma maneira divertida de parafrasear Marx. O trabalho, ou melhor, a obrigação de ter que trabalhar, é o problema central para todos nós, descendentes de Adão, condenados a só comer o fruto do suor de nossa testa. E esse problema tem sido resolvido através de uma distribuição desigual do trabalho, em que quase todos são obrigados a trabalhar muito para sustentar os jatinhos e ilhas particulares de uns poucos. Todos nós, obrigados a trabalhar, sabemos que trabalhar é uma desgraça. Não à toa buscamos soluções como passar em concursos públicos, onde o trabalho ao menos é menos degradante, ou empreender, obrigando o outro a trabalhar para podermos ficar à toa.
Ao longo dos séculos, a libertação de Adão tem sido uma das bandeiras centrais da esquerda, ou voltando à paráfrase de Marx, uma distribuição mais igualitária do trabalho e do ficar à toa. Se é a contradição capital-trabalho que define quem trabalha e quem fica à toa, para a esquerda se colocar do lado do trabalho ela precisa se colocar contra o trabalho.
Redução de jornada, combate ao assédio moral, fim da escala 6×1, incentivo ao trabalho remoto, oferta de programas de lazer e cultura. Se todos estamos insatisfeitos porque trabalhamos demais, esse trabalho é indigno, humilhante, brutal, a bandeira nos atrai é a libertação de Adão, é menos trabalho. É isso que a religião laica do empreendedorismo captou. Que os coaches de investimento prometendo renda passiva captaram. E que a esquerda esqueceu depois de virar governo.
O papel do estado é defender o Capital, não o trabalho. O que a esquerda oferece, há muito tempo, são políticas para os empregadores para incentivar a geração de empregos, mas não uma melhora significativa do emprego, entendendo que para o emprego melhorar ele precisa diminuir e nos consumir menos. O PT capitanear uma reforma da previdência em 2003, ajudando a tornar mais distante a aposentadoria, única possibilidade universal de libertação de Adão do seu castigo eterno, causou um enorme racha no partido e não foi à toa, porque defender o trabalhador é lutar contra o trabalho. Chegamos ao cúmulo dos sindicatos de trabalhadores serem a maior força defendendo política industrial que, por definição, é política de distribuir benefícios para os patrões.
Se o que a esquerda oferece é o emprego, o que ela oferece é indistinguível da tortura. É impossível capturar os sonhos e o entusiasmo de uma geração oferecendo algo com o que ninguém em sã consciência sonharia. É preciso resgatar a compressão do trabalho como um castigo, uma maldição, um fardo, porque é isso que ele é para a maioria dos trabalhadores, se queremos estar do lado desses trabalhadores.
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