É a ideologia, estúpido!

Os jornais não cansam de pedir que a esquerda se modere, para atrair um tal eleitor de centro, mas as pesquisas apontam que esse eleitor simplesmente não existe, assim como outras coisas. Esse artigo usa a pesquisa Latam Pulse, elaborada pela AtlasIntel, mas outras pesquisas têm resultados similares.

O modelo dos três terços

Ao longo das décadas, trombei várias vezes com a premissa de que o Brasil tem aproximadamente um terço de eleitores de esquerda, um terço de direita e um terço de centro, portanto, para vencer eleições seria preciso “caminhar ao centro” para conquistar o terço moderado do eleitorado. As pesquisas dizem que esse modelo não existe mais, se um dia existiu.

Tabela de gráficos da aprovação do presidente Lula conforme o voto em 2022. 
89,1% de quem votou em Lula o aprova. 91,3% de quem votou em Bolsonaro o desaprova.
Extraído da pg. 10 da pesquisa.

Esse padrão, da maior divisão entre o eleitorado ser definido pelo voto em 2022 se repete ao longo da pesquisa inteira. Os critérios demográficos, gênero, escolaridade, idade, religião, renda e região, com pequenas variações, apontam para uma divisão dentro de cada estrato desses grupos, enquanto o voto em 2022 é determinante.

O que podemos concluir é que a divisão do Brasil é em dois blocos ideológicos que atravessam de modo mais ou menos regular os vários estratos demográficos. Se podemos identificar o voto em Lula com a esquerda e o em Bolsonaro com a direita, o que divide o Brasil é a ideologia, e o centro quase não existe, e tentar se aproximar dele faz mais mal do que bem.

A ideologia avalia realidade, em vez de ser influenciada por ela

A pesquisa também tem perguntas clássicas sobre a avaliação da situação econômica atual e as perspectivas. Mesmo nessas perguntas, a divisão ideológica é mais importante que outros critérios demográficos. Quem votou em Lula diz que a economia vai bem e vai melhorar e quem votou em Bolsonaro diz que está rui me vai piorar. Ou seja, a posição ideológica orienta a avaliação da realidade, e não o contrário. Até mesmo as perguntas sobre o quanto os preços subiram nos últimos 6 meses, que deveria ser bastante objetiva, é definido pela ideologia. 37,3% de quem votou em Lula diz que os preços “ficaram iguais ou diminuíram”, enquanto 37,6% de quem votou em Bolsonaro diz que “Subiram fora do controle”.

Isso quer dizer que melhorar a avaliação do governo é antes uma questão de converter as pessoas à esquerda que de entregar resultados, porque mesmo os bons resultados, como o baixo desemprego e aumento da renda do trabalho, não vão ser reconhecidos como mérito do governo.

A captura de agendas é um perigo real

Se os resultados do governo tem pouco poder para mudar a opinião dos eleitores, politicamente, o objetivo do governo passa a ser o de agradar sua base, e não de converter seus adversários atendendo suas demandas. Isso quer dizer que o governo precisa focar nos pontos mais importantes para seus apoiadores, para evitar sua desmobilização.

Gráfico de barras dos problemas mais importantes do Brasil de acordo com o voto em 2022.
Algumas questões preocupam principalmente eleitores do Lula, como Degradação do meio ambiente e aquecimento global (51% a 11%) e Conservadorismo (23,9% a 0,3%).
Outas questões preocupam pouco ambos, como Estradas, portos e aeroportos (0,5% a 1%) e Mudança dos valores tradicionais (1,5% a 2,5%).
Alguns preocupam quase que apenas aos eleitores de Bolsonaro, como Economia e inflação (24,8% a 5,2%) e Mau funcionamento da justiça (25,4% a 6,4%).
Por fim, algumas pautas preocupam ambos, mas preocupam mais os eleitores de Bolsonaro, que os de Lula, como Corrupção (77,2% a 34,6%) e Criminalidade e tráfico de drogas (61,1% a 48,8%).
Elaborado a partir da p. 37 da pesquisa.

A pesquisa tem algumas surpresas, como o fato do “enfraquecimento da democracia” ser visto como um problema principalmente pelos eleitores de Bolsonaro (19,5% a 13,1%) apesar do discurso de “defesa da democracia” ser mais identificado com a esquerda e algumas obviedades, como o fato de “Impostos altos e ambiente de negócios” serem um problema apenas para os bolsonaristas. Também mostra que nos cinco maiores problemas para cada campo, dois deles são importantes para ambos.

LulaBolsonaro
Degradação do meio ambiente e aquecimento global51%11,3%
Criminalidade e tráfico de drogas48,8%61,10
Corrupção34,6%77,2%
Extremismo e polarização política27,9%2,7%
Conservadorismo23,9%0,3%
Enfraquecimento da democracia13,1%19,5%
Mau funcionamento da justiça6,4%25,4%
Economia e inflação5,2%24,8%
Cinco maiores problemas para eleitores de Lula e de Bolsonaro. Problemas para ambos os grupos em negrito.

O que essa pergunta tabela é que para satisfazer as demandas do seu eleitorado, Lula precisa focar na questão ambiental, extremismo e conservadorismo. Para tentar ganhar apoio entre os bolsonaristas precisa de ações contra o crime e corrupção, mas que se se dedicar a questões como enfraquecimento da democracia, mau funcionamento da justiça e economia, corre o risco de alienar seus próprios apoiadores.

Naturalmente, nessa lista de problemas, faltam questões importantes para a classe trabalhadora, mas que não tem espaço na esfera pública, como o custo absurdo dos aluguéis e imóveis, a escala 6×1, a jornada de trabalho alta, a qualidade do transporte público, etc.

Separar governo e partido

Se a avaliação do governo é mais afetada pela ideologia que pelo governo em si, o mais importante é a propaganda ideológica, mas em uma democracia o governo não pode fazer isso. Quem pode fazer são os partidos, os movimentos sociais, os think tanks, os veículos de imprensa. A comunicação partidária precisa se afastar da defesa do governo, de suas conquistas, e se debruçar sobre o convencimento ideológico, ao memso tempo em que o govrno precisa se dedicar às questões que são importantes para seus militanes, ao contrário da catástrofe que vem sendo as políticas na área ambiental.

As demografias importam menos que a ideologia

Há anos que se repete chavões como “a esquerda precisa se aproximar dos evangélicos”, que se baseiam na visão de que as demografias são o mais importante. Porém, se a ideologia é o mais importante, a estratégia passa a ser ampliar sua base onde a esquerda já tem presença, porque ampliar o que já existe é muito mais efetivo que tentar criar o novo do zero.

Se a maior variável para o comportamento político do brasileiro é a política, e não o grupo social ao qual o eleitor pertence, o que os atores precisam é investir no convencimento político, conscientização, e não uma propaganda genérica em torno de candidatos. É preciso que a esquerda não tenha vergonha de quem é e o que defende.

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1 Comentário

  1. @masdivago De certo modo esse artigo é uma afirmação extraordinária, mas sem apresentar evidência extraordinária.
    Espero que desperte interesse para que se faça alguma pesquisa procurando essas evidências extraordinárias.

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