A discussão sobre a taxa básica de juros do Brasil, a SELIC, é assombrada pelo fantasma do risco fiscal, mas vamos conversar a sério sobre o tema. (Alerta de blambers de economia)
Risco fiscal costuma ser entendido como o governo chegar a uma situação em que não tenha dinheiro para pagar as suas despesas, o que é uma definição um pouco diferente da de riscos fiscais apresentada nos orçamentos. O governo brasileiro, como quase todos os governos do mundo, vive no cheque especial, ou seja, arrecada menos do que gasta, todos os anos. Quando se fala em risco fiscal, o que querem dizer, na verdade, é: essa necessidade de financiamento do governo crescer a ponto do governo não conseguir pegar emprestado dinheiro o bastante para cobrir essa diferença. Mas esse risco realmente existe?
TLDR: Não, mas continuemos.
Para começo de conversa, o governo tem várias medidas para conseguir dinheiro que não estão sendo postas em prática, como vender dólares das reservas internacionais ou aumentar a própria SELIC, então, mesmo que esse tal risco fiscal se concretize, há ferramentas para enfrentar a situação que impedem que o governo realmente deixe de pagar suas contas.
Continuando, nas duas ocasiões em que a SELIC caiu de fato, nas gestões Dilma Rousseff, por vontade política e Jair Bolsonaro, pela pandemia, o governo não teve dificuldade em conseguir vender os títulos da dívida que precisava para se financiar. Os títulos do governo são um investimento seguro, então eles são comprados, mesmo que o ganho seja baixo. O importante é apenas o ganho ser maior que outras formas de investimento com segurança equivalente, como a poupança, e por isso as regras de remuneração da poupança foram mudadas. Se o mercado está disposto a absorver a dívida do governo, mesmo com juros mais baixos, não existe risco fiscal. Mas piora.
Como mencionei outro dia, o mercado brasileiro tem excesso de liquidez, ou seja, muito dinheiro circulando que não encontra um investimento fixo, porque durante o boom das commodities da década de 2000 entraram muitos recursos no país, mas uma grande parte desses recursos não foi reinvestido na economia produtiva, e permanece como dinheiro, circulando na economia. A estimativa é de aproximadamente R$ 1.000.000.000.000,00 (um TRILHÃO, com T de tapioca) de excesso de dinheiro, quase 20% do PIB. Esse excesso de liquidez gera uma situação em que há mais dinheiro procurando comprar títulos da dívida brasileira do que dívida disponível para ser vendida. Com isso, se “desregulamentar o mercado” a SELIC vai cair muito abaixo do valor definido pelo COPOM.
Por isso, o Banco Central intervém na economia e, toda noite, recolhe essa bolada, remunera pela SELIC e devolve na manhã seguinte para os especuladores ganharem durante o pregão, para ao final do pregão fazer dinheiro enquanto nós dormimos. Sem essa intervenção, seria impossível manter a SELIC no patamar atual, que é artificialmente alto, pelas regras do mercado. O motivo dessa intervenção (repetindo para que fique bem claro para qualquer liberal) é para reduzir a quantidade de dinheiro na economia e garantir que a taxa de juros artificialmente alta tenha efeito sobre a inflação. Essa mamata é chamada de “operações compromissadas“, mas esse texto não é para criticar essa excrescência.
O ponto é, se o Brasil tem 20% do PIB de excesso de liquidez, que pode virar crédito, investimento ou financiamento para o déficit público, não existe risco fiscal, porque não existe a menor possibilidade de o governo não conseguir se financiar. Aliás, o governo emitir mais dívida seria bom para a economia porque reduziria o excesso de liquidez do mercado, sem aumentar o gasto público, já que ele já remunera esse valor pela SELIC, permitindo reduzir a taxa de juros. Sim, na situação atual do Brasil, com 20% do PIB de excesso de liquidez, aumentar a dívida pública permite reduzir a taxa de juros, porque reduz a quantidade de dinheiro líquido no mercado.
Bem, mas de onde vem o discurso sobre o “risco fiscal” então? Eu tenho algumas hipóteses… Mas essas são mais adequadas a outro blog.
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