Entender a má-fé institucional é bom, mas importante é combatê-la.
Este post é a segunda parte de uma série, sobre a Má-Fé Institucional. Leia as outras partes:
O primeiro pilar da má-fé institucional é defender a igualdade de todos perante a lei, ignorando as desigualdades estruturais da sociedade. Qualquer benefício/direito que o estado provê que não tenta compensar essas desigualdades, na verdade, garante a sua reprodução.
Essa “acesso igual” personaliza o fracasso. A pobreza é culpa dos pobres, que não sabem aproveitar as oportunidades, e não do sistema que os impede. A meritocracia mascara que a reprodução da pobreza pelas gerações é um projeto. Que tem dado certo, e muito.
Pense na localização das melhores escolas públicas e na localização dos estudantes que mais precisam da educação para quebrar o ciclo intergeracional da pobreza. Na política de transporte público (ou falta dele) e como isso afeta o acesso a outros direitos. Na localização dos equipamentos culturais públicos, das praças com melhor estrutura e manutenção, e das pessoas que tem menos condições de pagar por cultura e lazer. Agora lembre que a cidade não é só acidente, mas também projeto. Existe Plano Diretor, aprovação de loteamentos…
É por isso que políticas que garantam acesso especial aos serviços públicos, como cotas e passe livre são um passo necessário para desmontar a má-fé institucional. Que as leis de uso do solo precisam punir a especulação imobiliária e exigir espaços públicos nas periferias. Que o transporte público deve ser incentivado e o individual combatido através de medidas como redução de vagas de estacionamento.
Mas voltamos a este assunto outro dia.
A forma que o “acesso universal” funciona como reprodução da desigualdade é exigir um marcador de privilégio para ter acesso a um serviço público ou direito.
O direito à defesa e ao devido processo legal são garantias constitucionais. Mas, na prática, é preciso ter um advogado, o que é um marcador de privilégio. Claro, existem Defensorias Públicas, sucateadas, ao contrário do Ministério Público. O Estado, que não poupa recursos para acusar, economiza ao máximo ao defender o povo pobre, ajudando a fabricar a realidade de que apenas pessoas pobres são presas no Brasil.
Os Institutos Federais oferecem educação pública gratuita e de qualidade no Ensino Médio, mas para acessá-los é preciso uma prova que não avalia apenas os estudantes, mas também as escolas que eles frequentaram. As universidades públicas têm o mesmo problema no ensino superior e pós-graduação, em especial as que insistem em manter um vestibular próprio, o que é mais excludente que o SISU. Felizmente, muitas dessas instituições tem políticas de cotas e permanência estudantil, o que minimiza, mas não elimina o problema.
Mas como resolver? Um bom exemplo é o Ministério da Cultura, uma das poucas instituições que tentou reduzir sua má-fé. Acostumados com a Lei Rouanet, campeã olímpica de má-fé, montaram seu projeto de apoio a culturas populares, o Cultura Vida/ Pontos de Cultura, com regras parecidas. Mas grupos populares não tem projetos bem escritos por produtores culturais experientes, (um marcador de privilégio) ou contadores capazes de fazer prestações de contas que o Tribunal de Contas da União aprove (outro marcador de privilégio).
Com o tempo foram alterando os editais. Transformaram os convênios em prêmios, que tem prestação de contas simplificada, que foi reduzida na Lei Aldir Blanc 2 a ponto da fiscalização in loco da realização das atividades ser o bastante em alguns casos, em vez de relatórios, planilhas, notais fiscais…
Alguns editais, passaram a aceitar inscrições em vídeo, com depoimentos de artistas e comunidade sobre o que já fizeram e o que pretendiam fazer, já que o domínio da técnica de escrever projetos também é um marcador de privilégio. Outros editais até mudaram seus objetos, tentando premiar o que as pessoas realmente fazem em vez dos formatos já tradicionais das expressões artísticas, já que eles foram definidos pela observação do que as classes privilegiadas fazem, então saber e poder usar esses formatos também é um marcador de privilégio. O Prêmio Cultura Hip Hop 2010 — Edição Preto Ghóez, por exemplo, teve categorias como “Escola de Rua” e “Correria”, definidos pelos objetivos das ações em vez da sua forma, que refletem o que o movimento realmente faz.
Então, um dos meios de combater a má-fé institucional é identificar quais marcadores de privilégio, explícitos e implícitos, impedem o acesso e criar mecanismos para:
- reduzir seu poder: implementar cotas, criar limites legais ao que o dinheiro pode comprar, fortalecer órgãos que garantem direitos dos mais pobres diante dos mais ricos, como PROCONs, defensorias e ouvidorias.
- eliminá-los: adaptar as políticas do estado às necessidades e capacidades das pessoas, em vez de esperar que elas se adaptem aos processos do Estado, como o MinC fez.
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