Este post é a terceira, e última, parte de uma série, sobre a Má-Fé Institucional. Leia as outras partes:

  1. O que é a “má-fé institucional”?
  2. Como se combate a má-fé? — Acesso

Se o primeiro mecanismo da má-fé é a exigência universal de recursos que apenas alguns têm acesso, o outro pilar é a aplicação seletiva de regrar que deveriam ser universais.

Ou, como já dizia a velha canção de 1871:

Crime de rico, a lei o cobre,
O Estado esmaga o oprimido,
Não há direitos para o pobre,
Ao rico tudo é permitido

Não é à toa que estranhemos quando pessoas ricas são presas, porque o normal na nossa sociedade é que eles estejam acima da lei. Se o acesso aos serviços públicos finge neutralidade ao aplicar as mesmas exigências a todos, ser vítima das punições do estado é algo cuja neutralidade só existe no papel, afinal a polícia sobe atirando nos morros, mas interfona e pede licença nos condomínios.

Toda a discussão sobre a despenalização do porte de maconha para consumo próprio, na verdade, é sobre a aplicação seletiva da lei que permite direcionar a violência contra a população pobre do país. Se combater a má-fé pelo lado do acesso exige que o Estado reconheça que seus padrões têm exigências implícitas e faça alterações para acomodar quem não é capaz de atender os requisitos, pelo lado da repressão, exige impor que seus agentes sigam rigorosamente a lei, modelada para garantir os direitos de quem pode pagar para ter direitos.

Isso quer dizer que as polícias devem ter protocolos de uso da força públicos e publicados, que devemos ter audiências de custódia, que as autópsias não devem ser feitas pela própria polícia, que o Ministério Público não pode fingir que não tem a obrigação de controle externo da polícia, e outras tantas medidas, até câmeras corporais.

A lei, já dizia Marx, é criada para garantir os privilégios da classe dominante, e por isso, via de regra, a lei já tem todas as medidas necessárias para impedir o encarceramento em massa, o uso excessivo da força, a guerra às drogas e o genocídio da população negra. A dificuldade é obrigar o Estado a seguir a lei. Garantir que todos tenham os direitos previstos na lei, de inviolabilidade do lar, não sofrer violência policial, ampla defesa, prisão somente após a condenação, acesso a penas alternativas e uma lista infindável.

A lista do parágrafo anterior já deve ter acendido um alerta em alguns leitores, porque são medidas que, na prática, vão desmontar nossos sistemas de segurança, justiça e prisional, porque hoje, eles se baseiam no abuso da lei, em ignorar os direitos de suas vítimas, exceto se eles possam pagar por muitos e bons advogados. Ocorre que precisamos parar de aceitar o abuso da lei como medida válida para resolver o problema da violência, porque esse abuso sempre tem um papel claro de classe. É preciso analisar os abusos da aplicação seletiva da repressão e identificar qual problema eles “resolvem”. O abuso da prisão antes da condenação nasce da demora nos processos de investigação e condenação, por exemplo.

Isso quer dizer que a mudança não precisa de leis novas ou emendas constitucionais, como a desmilitarização das polícias, mas de medidas administrativas, de celeridade da justiça, funcionamento de mecanismos de controle, interno, externo e social. Não é a pirotecnia, mas o controle e melhoria cotidianos do sistema de repressão e justiça que fará efeito.

Essa contradição se sustenta exatamente na má-fé institucional. Temos leis que garantem direitos aos cidadãos, mas que são seletivamente ignoradas. Como pelo lado do acesso, precisamos usar o discurso do Estado, que ele precisa para garantir sua legitimidade, contra suas reais intenções.