Não quero mais saber da distopia que não é revolução.

Alphaville, o primeiro bairro de condomínios fechados do Brasil, restrito para os mais abastados, retirou seu nome de uma distopia francesa de 1965, que protestava conta a artificialidade da vida sem sentimentos governada pela tecnologia.

Meritocracia, a mais badalada ideologia que diz defender sistemas justos, nasce em uma distopia inglesa de 1958, que protestava contra um sistema educacional discriminatório, que tinha escolas de elite para os que iam para a universidade, e escolas técnicas, para formar mão de obra.

De algum modo, o meme que ilustra esse post está mais que certo: o que era para ser, literalmente, uma distopia, acaba virando objeto do desejo para uma sociedade, ocupando o espaço reservado para a utopia.

Não é difícil fazer isso, porque tanto utopias quanto distopias são a mesma coisa: pensamento prospectivo, pensamento imaginando um futuro, talvez não provável ou mesmo possível, mas um futuro que pode ser imaginado a partir das condições do presente. O que as separa são apenas os afetos mobilizados.

É com desejo ou medo que olhamos para esse futuro possível? É com desejo ou medo que olhamos para um mundo artificial, controlado, sem emoção ou espontaneidade dos condomínios? É com desejo ou medo que olhamos para um sistema que nega oportunidades para uns, enquanto oferece para outros, e cria a ilusão de que os que receberam oportunidades se esforçaram mais e merecem seu status?

Darcy Ribeiro dizia que a crise da educação no Brasil é um projeto, Bourdieu elabora isso com o conceito de má-fé institucional: as instituições têm projetos inconfessáveis, e por isso mentem sobre seus objetivos. Tudo isso diz, com outros termos, o que Marx apontava desde muito antes: o estado atende aos interesses da classe que o comanda, contra as outras classes.

O grande problema da distopia é que exacerbar algo da nossa realidade para criticar, é esquecer que os problemas do nosso mundo não são acidentes que podemos superar com esclarecimento, mas projetos que precisam ser derrubados à força.

O problema não é que “As pessoas não são más, elas só estão perdidas”, “como se a questão fosse guerra ou paz / ​mas sempre foi guerra ou ser devorado”. Todas as distopias são utopias para os senhores do mundo, que construíram as condições que as inspiram e usam todos os meios, violentos e persuasivos, para preservar essa situação. Capitalistas que controlam governos, ganham dinheiro vendendo armas, destruindo o ambiente e depois usam jornais, TVs e redes sociais para nos controlar.

A única distopia que vale a pena, é a distopia para eles, que transformaram nossa vida em uma. Uma revolução é o futuro possível que eles olham com medo, e nós com desejo.

Estou farto de distopia que vira manual de instrução.
Não quero mais saber da distopia que não é revolução.

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8 Comentários

  1. @masdivago
    @cochise seu texto?
    Sensacional de bom!

  2. @masdivago Esse texto me remeteu diretamente ao cyberpunk que era um grande projeto estético-político e foi cooptado pelos bilionários, calhando naquela falha que foi o Cyberpunk 2077 ― ou Cyberbug 2077, como reclamam os jogadores.

    • Isso me leva a outro debate que acho muito interessante. Thiago Guimarães defende que existe uma “armadilha semiótica” no modo como representamos os objetos que queremos criticar em determinadas obras, porque a gramática da sua representação é uma gramática da glorificação.
      Acho que o cyberpunk caiu muito nessa armadilha.
      https://youtu.be/8SeumNE0tak

      • @masdivago

        Por falar em estética, sempre tive resistência ao Ora Thiago desde os tempos em que fiquei no TikTok exatamente pelo estilo de apresentação e edição. Acho que ele faz muita média com a estética “fast media”, de “meme-speak”, e que diz sempre os mesmos chavões neoliberais. Mas fiz um esforço para ver o vídeo, avancei para a parte na qual ele diz sobre a armadilha semiótica, e gostei muito da explicação, das ilustrações e também das reflexões. Acho que o que ele está apresentando aplica-se a ele mesmo: explana uma ideia coesa, mas que por estar involucrada em um veículo e em uma linguagem que são associadas à informação fácil e rasa, não dá para ser levada a sério em um primeiro momento. No mais, é um bom vídeo. Obrigado pela indicação!

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