No mundo dos livros, existe uma hierarquia das obras, implícita na sua materialidade, para usar o jargão do Chartier. As edições de luxo são reservadas aos melhores livros, enquanto a baixa literatura é impressa em papel de polpa, ou papel jornal, como gostamos de chamar. Claro que há exceções, e o mercado editorial brasileiro nunca foi o mais funcional, mas esse é inclusive um dos motivos para o excesso de qualidade gráfica no Brasil. As pessoas percebem essa hierarquia, mesmo que não a entendam plenamente, e querem suas edições de luxo para figurar na estante como símbolo de erudição.
Porém, uma pergunta que ainda estamos longe, muito longe de responder é: como se define a hierarquia dos textos da internet? Na falta de um suporte material que indique a diferença de status e respeitabilidade entre Morro dos Ventos Uivantes de Malícia de Mulher, o que demonstra para o leitor que um texto tem qualidade, é confiável, é verdadeiro, pode ser compartilhado?
Na internet tudo partilha a mesma materialidade, a sua tela, e as diferenças de apresentação, que poderiam ser um equivalente à materialidade, são mínimas. Mas o pior: as diferenças não se relacionam, em nada, com o valor do texto. Há páginas extremamente bem construídas e elaboradas para vender todo tipo de fraude, produtos inúteis e mentiras. Não há nada que pareça mais confiável que uma fraude esforçada.
Curiosamente, essa questão foi resolvida, em escala, pelo Google há muitos, muitos anos, através do algorítimo PageRank, que calcula a confiabilidade através dos links que as páginas recebem de outras. Entre outras coisas, isso garantiu ao Google um monopólio sobre as buscas online, mas o efeito mais importante para nós é como isso nos acostumou a confiar nos resultados automatizados de buscas, linhas do tempo e algorítimos de recomendação.
Sem nossa confiança ingênua de que as grandes plataformas capitalistas buscam nos oferecer o melhor, a visibilidade não teria se tornado um dos critérios de qualidade. Talvez o maior deles. Só que as plataformas têm agendas próprias e nos oferecem o melhor, mas para elas próprias. Tornar as empresas responsáveis pelo que impulsionam algoritmicamente, talvez possa nos ajudar. Criminalizar o astroturfing também, mas isso é tema para outro post.
Mas, para além disso, é uma grande bagunça. Grandes portais impessoais com design profissional passam confiabilidade, mas vídeos e áudios amadores também. Se argumentos de aparência científica não fossem confiáveis, não existia o coach quântico, mas, ao mesmo tempo, uma das frentes mais populares do movimento antivacina é a mística e altamente emocional. Ter um currículo e reconhecimento fora da rede pode altamente relevante, mas ser um influencer, cuja única característica é estar online é a profissão do momento.
O fim da materialidade trouxe uma perda de parâmetros de valor para a qual o mundo não está preparado, e o surgimento de novos parâmetros parece ser lento e múltiplo, com vários grupos diferentes elegendo critérios diferentes, o que leva a uma fragmentação do discurso social que pode impedir a ação política.
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