Vários debates sobre a internet são insolúveis porque partem de uma confusão entre o público e o privado, criada pela própria internet.

Por muitos séculos houve uma diferença clara entre a comunicação privada, como cartas e telefonemas, e a comunicação social, como jornais ou rádio. Essas duas comunicações não apenas ocorriam em mídias diferentes como tinham conteúdos diferentes. Essa diferença é cada vez menor hoje em dia, tanto em mídia quanto em conteúdo.

Hoje, “aplicativos de mensagens”, como WhatsApp e Telegram, são o espaço de grandes grupos e canais que falam para milhares de pessoas ao mesmo tempo. “Aplicativos de publicação”, como Instagram e Facebook, são espaços de conversas particulares e conexões familiares. Essa fusão a frio tem consequências sobre as quais não estamos refletindo, porque esquecemos a ideia central d’A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica: o que determina o valor de uma mensagem é seu meio, portanto uniformizar o meio leva ao nivelamento do valor da mensagem.

Não à toa o influencer aleatório tem tanta credibilidade quanto especialistas. Afinal, todos estão na mesma mídia. O que tornaria um post na rede social inerentemente mais valioso que outro? Nada. Apenas os especialistas sabem identificar uma fraude, e há poucos especialistas.

No nível atual da reprodutibilidade técnica da informação, não faz sentido um especialista limitar o direito de publicação, se todo mundo pode publicar, e ter o mesmo acesso ao público, porque a mídia de publicação é a mesma da comunicação privada. Não à toa houve uma implosão de figuras como curador e editor.

Mas esses são problemas para acadêmicos debaterem nas suas torres de marfim. O problema real para nós é: nossa sociedade se sustenta na separação da comunicação pessoal da social. Para nós, a comunicação pessoal é sagrada, inviolável, privada e livre de censura. Mas a social é um empreendimento que deve obedecer a limites, ter responsabilidade e arcar com consequências.

Mas como delimitar esse limite se a comunicação social ocorre no aplicativo em que você posta as fotos do seu cachorro? Se uma mensagem privada pode ser compartilhada com um grupo de milhares de pessoas? Se o alcance e impacto de um grupo de vizinhos é tão grande ou maior que um jornal de bairro ou rádio comunitária?

Boa parte da discussão atual sobre liberdade de expressão ocorre nos escombros do muro entre a comunicação pessoal e a social, que desmoronou quando boa parte da nossa comunicação pessoal e tornou pública e a maior parte da comunicação pessoal passou a ocorrer na mesma mídia da comunicação pessoal. Nossos mecanismos institucionais não estão para lidar com essa situação e nenhuma das soluções óbvias é boa. Nem jogar sobre a comunicação pessoal que ocorre em público todas as responsabilidades da comunicação social, o que criaria um estado policial, nem garantir à comunicação social as imunidades da comunicação pessoal, permitindo todo tipo de crime.

A melhor possibilidade que estamos debatendo atualmente é responsabilizar as redes pelo conteúdo impulsionado por seus algorítimos. Esses algorítimos são o mais perto que temos de uma curadoria hoje em dia, e o impulsionamento algorítmico é ums das principais causas de um conteúdo alcançar massas a ponto de ser considerado comunicação social. Os grandes capitalistas da internet, baseadas na ideia de neutralidade da rede, tentam se passar por mero meio sem responsabilidade editorial sobre o conteúdo publicado, ao mesmo tempo que seus algorítimos selecionam a quase totalidade do conteúdo que as pessoas veem nas redes sociais, ou seja, não tratam os conteúdos de modo neutro.

Diante do fim do muro entre a comunicação pessoal e social, talvez lugar em que mais valha a pena colocar a responsabilidade da comunicação social seja na mídia.